Nasci em Santo Tirso, local onde o meu pai trabalhava (na agência do BPA), a segunda menina de uma ainda então pequena família que haveria de crescer sempre no feminino. Somos quatro irmãs seguidas e crescemos juntas nos anos sessenta e setenta, com os nossos brinquedos em folha de chapa, as nossas bonecas de papel com coleções de roupas diferentes, os livros da Anita, os gira-discos de agulha, a TV a preto e branco onde gostávamos de ver a Pipi das Meias Altas e o Bonanza. Aprendemos as primeiras letras na escola particular que ficava do outro lado da rua, em frente da casa, em Famalicão, onde as raparigas estavam separadas dos rapazes (mesmo no recreio vedado por uma rede) e a professora não poupava erros nem admitia falhas. Íamos fazer os recados da nossa mãe à mercearia do lado, onde pedíamos ao balcão e trazíamos as porções em cartuchos de papel, ou à tabacaria em frente, comprar um maço de cigarros Português Suave para o pai.
Fomos todas para a Universidade do Porto ou do Minho e a todas o meu pai cumpriu o prometido – a carta de condução aos 21 anos. Tornamo-nos assim, ainda que meninas protegidas e educadas num modelo tradicional, mulheres independentes - condição que a mãe nunca experimentou, por ser ‘apenas’ dona de casa, o que era tão comum então.
Quando fiz 13 anos o meu primo mais velho ofereceu-me uma prenda de que ainda hoje me recordo: “O diário de Ana Maria” de Michel Quoist. O livro tornou-se um companheiro da minha adolescência (com a coincidência de a personagem ter o mesmo nome e idade que eu) e foi talvez o impulsionador do meu gosto pela escrita de diários e pela leitura das memórias biográficas, que sempre me complementou.
As grandes viagens vieram mais tarde, depois da primeira a Paris, na casa dos 20, com amigos, que me apaixonou! Mas o gosto pelas Ciências Sociais e tudo que elas me trouxeram começou mais cedo, numa época de grande efervescência social, não mais deixando de a elas me dedicar … Sou hoje o que acho que sempre quis: mulher, livre, independente, apologista da família e dos valores patrimoniais da nossa memória coletiva. É nesta dinâmica que me movo num contínuo relacionamento entre o saber dos mais jovens (os meus filhos e os alunos que sempre me acompanharam) e os mais velhos que representam o património geracional do nosso saber e das nossas culturas.
Continuo hoje com uma grande paixão pela vida e por tudo o que há ainda para observar, apreender e fazer. Um misto da memória que recolhemos e construímos e do sonho que alimentamos. O gosto que tenho pela reconstrução da história das populações, pelas histórias de família e pelas histórias de vida (autobiografias e diários) preenchem a complementaridade da minha atividade docente e o meu percurso académico de permanente indagação e investigação científica, que continua a misturar-se com o que me desperta a curiosidade e o gosto de saber fazer. Histórias de elites e histórias de pessoas comuns. Histórias individuais e de coletivos. Histórias de poder e das franjas mais marginais, também elas, tantas vezes, tornadas poderosas e fundamentais à compreensão do todo social.
Sem a memória não há identidade, não há celebrações, não há coletividade, não há património, não há história, não há solidariedade e afectos. Sem uma parte de utopia e de sonho, sem a vontade, as nossas vidas esmorecem e perdemos o sentido da nossa existência.