A Casa dos Crivos tem patente ao público, até 29 de Novembro, a exposição ‘Traços de Luz - O Mundo Animado de Abi Feijó e Regina Pessoa’, que documenta os 25 anos de carreira da dupla de artistas. A este propósito, conversamos com Abi Feijó, considerado, tal como Regina Pessoa, um dos mais importantes realizadores de filmes de Animação a nível nacional. Com mais de 100 prémios internacionais e famoso por recorrer a técnicas pouco convencionais, é membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas norte-americana. A Casa Museu de Vilar é o seu projeto mais recente.
Nesta entrevista, o cineasta de animação fala sobre a exposição e o recuo até à época mágica do Pré-Cinema, mas também aborda a sua carreira, o processo de criação e a relação com a cidade de Braga. A mostra de retrospectiva contém materiais de produção originais dos filmes "Os Salteadores" (1993), "Fado Lusitano" (1995) e "Clandestino" (2000), de Abi Feijó, "A Noite" (1999), "História Trágica com Final Feliz" (2005) e "Kali, O Pequeno Vampiro" (2012), de Regina Pessoa, assim como uma parte da colecção da Casa-Museu de Vilar, um Museu de Animação situado em Lousada na casa de família dos realizadores.
De acordo com as alterações nos horários permitidos para circulação, o horário da Casa dos Crivos será o seguinte: Segunda-feira a Sexta-feira: 10h00 -13h00/15h00 -18h00 e Sábado / Domingo: 10h00 -12h30.
Entrevista - Abi Feijó
Enquanto realizadores, o que determinou este caminho pela animação?
Abi Feijó (AF): Foi enquanto estava na Escola de Belas-Artes do Porto a estudar Arte Gráfica e Design e, durante os meus estudos, começou o Cinanima em Espinho. Nessa altura o interesse que tinha pela Banda Desenhada, mudou para o Cinema de Animação. Descobri que a Animação podia ser muito mais do que as séries de televisão, as longa-metragens comerciais e eu tinha apenas acesso a só uma parte da animação, muito limitada, que era uma parte muito mais comercial; e, no Cinanima, vi o lado cultural, o lado artístico que me fascinou. E foi assim que os meus interesses mudaram da Banda Desenhada para o Cinema de Animação. Aí tive a oportunidade de frequentar os ateliês com o professor Gaston Roch, professor Belga e tive mais tarde a oportunidade de fazer um estágio no Office National du Film du Canada, onde fiz o meu primeiro filme. Ao regressar do Canadá tentei juntar à minha volta um grupo de pessoas no Porto que estariam interessadas no Cinema de Animação e, desse grupo, surgiu o Filmógrafo e, mais tarde, quando Portugal aderiu à Comunidade Europeia começaram os apoios específicos para o Cinema de Animação, sendo os primeiros apoios conferidos ao filme “Os Salteadores”. Foi durante a produção de “Os Salteadores” que apareceu a Regina com os seus desenhos debaixo do braço a pedir-me emprego e eu, que estava a precisar de colaboradores, olhei para o trabalho dela e disse: «começa amanhã!». Vinte e oito anos depois ainda estamos a trabalhar juntos.
Entre recortes, desenhos e gravuras como decorre o vosso processo de criação e que universos gostam de abordar?
AF: “Eu pessoalmente, tenho dois aspetos: uma parte técnica e outra estética. Cada um dos meus filmes tem quase uma técnica diferente. O meu primeiro filme feito no Canadá, contém oito técnicas diferentes em apenas três minutos tem. Serviu um bocado como um catálogo depois do que eu iria desenvolver um pouco mais tarde. Muitas vezes me perguntam qual é a minha técnica preferida; a minha técnica preferida é mudar de técnica porque nós trabalhamos tanto tempo envolvidos num universo, que estarmos fechados sempre à volta da mesma coisa, (porque o tempo de produção dos filmes de animação são muito longos), começamos a desejar outros desafios. E, de fato, cada filme acaba por ser um desafio em todos os termos, incluindo os termos técnicos. Por outro lado, em termos de comunicação, de conteúdo dos filmes, a minha preocupação tem sido em ir às minhas raízes. «Quem é que eu sou, de onde é que eu venho»; se uma pessoa falar das nossas coisas, dos nossos problemas, quem melhor do que nós para o fazer? Se virmos o cinema americano, em 99% dos casos só falam deles. Agora alguém que queira fazer um filme à americana ficará sempre a perder, porque falta qualquer coisa. Nem vale a pena sequer tentar fazer alguma coisa desse género. Para mim, é muito mais interessante ver quem é que eu sou, de onde é que eu venho, qual é o meu meio e a minha cultura. Portanto os meus filmes são feitos nesse universo. A Regina também vai às suas raízes, mas de um ponto de vista mais individual. Relembra a sua infância, que foram momentos duros para ela. E, no fundo, os filmes dela acabam por ser uma catarse para os seus problemas, para a ajudar a compreender e a ultrapassar todas as dificuldades que ela teve. Se falarmos de nós próprios se calhar conseguimos ser mais originais do que estar a falar de banalidades que toda a gente já viu. Tentamos ser originais a partir das nossas próprias experiências”.
Qual foi o vosso projeto mais desafiador?
AF: Cada filme é sempre um desafio. Para mim, um dos mais complicados, foi “Os Salteadores” porque marca toda uma passagem. Comecei a pensar na história quando vim do Canadá e encontrei a história do Jorge de Sena num livro que o meu pai me ofereceu, uma compilação de contos e poemas e eu não conhecia aquela história e pensei que valia a pena falar dela porque muita gente não a conhece. E fi-la nos meus tempos livres. Quando acabei de fazer o storyboard procurei financiamento, mas fecharam-me as portas. Este projeto esteve durante cinco anos na gaveta à espera de arranjar meios para o produzir. Depois, quando tive meios para o produzir, arranjei uma equipa profissional. Mas como não havia tradição, o desafio foi não só fazer o filme como formar as pessoas que trabalharam comigo. Uma delas, por exemplo, foi a Regina. Foi o desafio de fazer um filme ambicioso, com uma equipa muito grande sem formação nenhuma. Com estas condicionantes todas foi, de fato, um grande desafio.
Sabemos que são responsáveis pela criação da Casa Museu de Vilar. Qual é a principal missão deste equipamento e qual o caminho de futuro?
AF: A Casa Museu de Vilar é um pequeno museu dedicado à imagem em movimento. O núcleo básico são três salas de exposição. Uma dedica-se ao pré-cinema, às ilusões de ótica, isto é, à ilusão da imagem em movimento, e que no fundo nos permite fazer um percurso sobre as origens do cinema. Depois temos uma sala sobre o meu trabalho e o da Regina e temos ainda uma terceira sala que é a animação internacional, com trabalhos de animadores de um pouco de todo o mundo. Essa é uma das vertentes da nossa coleção permanente. Depois temos uma segunda vertente, que são as exposições itinerantes como esta que está aqui na Casa dos Crivos. Adaptada, sempre, obviamente. Esta exposição teve a sua primeira edição em Valencia, Espanha, em 2017, depois esteve em Itália e foi mais tarde para a MONSTRA em Lisboa e, agora está aqui em Braga. Esta tradição de exposições itinerantes tem sido feita desde o início, sempre que fiz um filme, tentei sempre fazer uma exposição com os desenhos originais. E temos ainda uma outra vertente, que ainda está em construção, e é sobre os brinquedos óticos. O que está nesta exposição já mostra esta minha pequena ambição. Portanto, temos uma parte do Museu de Vilar e uma parte de brinquedos óticos, mais recente que contém algumas peças antigas que é o caso da lanterna mágica. Temos ainda o serviço educativo, com oficinas de cinema de animação com as escolas, sobretudo.
O que é que os Bracarenses vão encontrar nesta exposição?
AF: A exposição tem três partes. O trabalho da Regina, o meu trabalho, e uma parte ligada ao Museu de Vilar. O da Regina tem os três filmes "A Noite", a "História Trágica com Final Feliz" e "Kali, O Pequeno Vampiro". A minha obra também tem três partes com "Os Salteadores", o "Fado Lusitano" e o "Clandestino" e temos ainda o Museu com a arte dos brinquedos óticos e a parte antiga com placas da lanterna mágica.
O Abi Feijó nasceu em Braga. Como descreve a sua relação com a cidade?
AF: Nasci em Braga e não foi propriamente por acaso, mas não aqueci o lugar, como se costuma dizer. O meu avô tinha a Clínica Cirúrgica de Braga, aqui na Rua do Raio. Foi ele que a criou até se reformar; e a minha mãe quando tinha as suas crianças, vinha-as ter aqui na clínica. Mas vivíamos em Vilar, Lousada. Nasci aqui por causa destas circunstâncias. Vínhamos aqui a Braga sempre no Natal, na Páscoa, no aniversário do meu avô e da minha avó. Era a peregrinação sistemática. Quatro vezes por ano cá estávamos nós. Mas eu quase não conheci Braga nessa altura. Só conheci mais tarde quando vim aqui trabalhar um mês como voluntário, no campo arqueológico da cidade. Foi de bicicleta que a conheci. Mas já quase que não a conheço outra vez porque está de tal maneira diferente…